Seguidores

sábado, 17 de dezembro de 2011

Tatuagens

A senhora apanhava todos os dias o mesmo autocarro. Entrava no 103 sempre com um sorriso nos lábios cumprimentando os demais. Sorria sempre, embora nem sempre isso lhe pautasse a alma. Não tinha um sorriso encantador, mas possivelmente seria a única pessoa que no âmago da confusão da sua vida, ainda sorria e dava os bons-dias aos utentes do autocarro. Passava o passe como faziam todos os outros. Vinha sempre carregada. Basta vezes lhe cedi o lugar, por mera gentileza, ela nunca agradecia, sorria apenas. Quando nos cruzávamos não raras vezes dizia-me que eu tinha um sorriso lindo, não que isso fosse completamente verdade, mas talvez porque reparava que eu não tinha a mesma capacidade que ela demonstrava.
Um dia a viagem foi mais demorosa, dei por mim a olhar para ela, a observar a senhora. Tinha rugas de expressão consequentes dos "amores e desamores da vida", dizia.
Mas tinha mais que isso.
Tinha umas mãos marcadas no pescoço que se esforçava em esconder com os lenços de muitas cores que usava. Afinal, a senhora sorria não que tivesse motivos para sorrir, apenas foi uma escapatória que arranjou para que não a renegassem logo a uma primeira impressão. Afinal não irradiava felicidade e não vivia bem com a vida. As marcas no pescoço evidenciavam-no estavam lá como tatuagens que a vida lhe cravou.
Mesmo assim na carteira guardava uma imagem do marido e dos filhos. Com o passar das semanas, fui lhe conquistando a confiança. Contou-me histórias e peripécias sobre os filhos. Falava deles com um verdadeiro amor de mãe, sempre de braço dado com um leve soluço e uma lágrima no canto do olho.
Nunca falou do marido. Não que não gostasse dele de verdade, afinal a maior parte das compras que carregava eram para ele, porque os filhos dizia ela" já tinham partido para voos mais altos" enquanto ela permanecia emaranhada nas suas rotinas.
Nunca falou do marido por se envergonhar do que ele lhe tinha feito. No entanto guardava-lhe muito respeito, quase tanto ou mais como a Deus que trazia suspenso ao pescoço.
Acreditava que um dia a vida lhe retribuiria todos os sorrisos que emanava. Foi a última coisa que me disse antes de sair.

Sem comentários:

Enviar um comentário